domingo, 25 de maio de 2008

Resenha do filme Homo sapiens 1900

Homo sapiens 1900
Suécia, 1998. 88 min. Direção, roteiro, produção e montagem: Peter Cohen.

Peter Cohen:
Nasceu em Lund, Suécia, em 1946, filho de um judeu alemão que fugiu de Berlim em 1938. Tornou-se fotógrafo profissional aos 18 anos e estudou na Escola de Cinema de Estocolmo e no Instituto Dramático de Documentários até 1975. Produziu mais de 40 documentários e filmes infantis premiados internacionalmente. Seu Arquitetura da Destruição foi premiado em diferentes mostras e se transformou em cult no Brasil.


O documentário de Peter Cohen é extremamente interessante e revelador das tendências assumidas pelas ciências, de maneira mais geral, pelas sociedades européias, pois arquivos de fotos e filmes utilizados deixam claro o fortalecimento da idéia de que seria possível e desejável a melhoria da raça humana através da ciência desde fins do século XIX até chegar a um ponto extremo com o nazismo e fascismo.
Partindo da teoria darwiniana da evolução das espécies, o inglês Francis Galton seria um dos primeiros a defender a criação de uma ciência que pudesse promover a melhoria da espécie humana aplicando um cruzamento seletivo já aplicado à agrucultura e à pecuária: a eugenia. A vida, a família e a sociedade poderiam ser cultivadas como um jardim em que ervas daninhas devem ser distinguidas de plantas úteis. A eugenia poderia assumir uma forma positiva – idéia disseminada de forma pioneira na Europa do Norte, que consistiria em esforços para incentivar o cruzamento entre seres humanos superiores – e uma forma negativa – evitar a reprodução de seres considerados inferiores e mesmo a eliminação de seres nascidos com defeitos, como defenderam eugenistas mais radicais em diferentes países, como os Estados Unidos e a Alemanha (neste caso, posto nas décadas de 1930 e 40).
Algumas décadas antes de 1900 – o autor toma esta data como título para destacar a força que a idéia de eugenia teria no século que se iniciava – as leis de Gregor Mendel são redescobertas. Porém, o fortalecimento desta teoria dá origem a uma controvérsia entre os lamarckistas (o meio ambiente forma a hereditariedade) e os mendelianos, sendo a adesão a cada uma destas correntes relacionada à dinâmica política e social de cada lugar.
O termo higiene racial inventado pelo médio alemão Alfred Beltz, propondo eliminar bebês com problemas, isto é uma eugenia positiva reforçada por uma purgação. Criar ciência nova e abrangente, a Biologia Racial e Social. A idéia de uma “raça pura” torna-se popular na Alemanha já em torno de 1900.
Na Suécia, em fins do século XIX e início do XX foram levadas a cabo pesquisas sistemáticas em prisões e institutos penais, cidades e paróquias, com atenção às características étnicas e antropológicas. Ali, as políticas e concepções racistas disseminaram-se paralelamente – e muitas vezes, de com alguma associação – ao surgimento de um estado de bem-estar social. Unindo estes elementos aparentemente díspares, a valorização o sangue nórdico – incluindo aí uma suposta origem pura comum aos alemães – persistirá mesmo no pós-guerra – evidente nas campanhas de esterilização em massa que só deixaram de ser vistas como razoáveis nos anos 1970.
Medições, comparações e hierarquizações dos diferentes formatos de crânio e biótipos permitiriam descobrir a raiz genética, hereditária (natural) das desigualdades sociais no interior de cada “nação” européia e em entre a “civilização” européia como um todo e as excêntricas “raças” vindas de lugares cada vez mais desconhecidos e “primitivo” do globo. Nesse sentido, “a biologia era essencial para uma ideologia burguesa teoricamente igualitária, pois deslocava a culpa das evidentes desigualdades humanas para a natureza ... [e serviria para a] concentração e incentivo às estirpes humanas de valor (em geral identificadas à burguesia ou a raças adequadamente coloridas, como a ‘nórdica’.” (Hobsbawn, p.351-352). Este intercâmbio entre eugenia e a nova ciência da “genética” – num quadro geral de diversificação e autonomização das ciências – veio à luz pouco antes de 1900 e continuaria a dar frutos.
Portanto, é evidente a relação deste fortalecimento da idéia de higiene racial – não apenas entre elites, mas também entre proporções consideráveis das “massas” de diferentes países – e o processo de expansão do imperialismo e do colonialismo. Os pavilhões coloniais das grandes exposições e feiras internacionais apresentariam, desde as últimas décadas do século XIX, curiosos e exóticos seres humanos vindos de áreas colonizadas e/ou dominadas por alguma parte da Europa “civilizada”.
Já os Estados Unidos da América, defensores da “democracia liberal na 2ª Guerra Mundial”, foram palco de campanhas racistas contra negros e imigrantes no período. No ano de 1907, mais de 20 estados norte-americanos possuíam leis de esterilização compulsória, que incidiram sobre dezenas de milhares de pessoas. Competições eugênicas, com testes de inteligência e exames médicos de famílias, em que os vencedores recebiam prêmios por portarem “boa herança”. Mesmo Hollywood expôs a crescente aceitação da idéia de higiene racial no filme “The Black Stork” em que um médico convence uma mãe a abandonar seu bebê recém-nascido com defeitos. Só na 2ª Guerra Mundial, em que os soldados americanos combateriam os alemães em duras batalhas, as idéias eugênicas perdem força, por estarem demasiadamente associadas ao nazismo e ao fascismo.
Na Rússia pré-revolucionária, já havia cientistas e intelectuais defensores de alguma forma de eugenia. Mas é na URSS, desde a morte de Lênin, que a preocupação em definir as características do homem socialista perfeito ganha força. Uma biologia socialista (e lamarckista) passa a ter caráter de “dogma”, com a preocupação de definir os comportamentos (ditados pela interpretação dada pelo Estado ao socialismo) que poderiam levar a uma melhoria genética – tendo como contrapartida a proibição de pesquisas genéticas mendelianas, sendo alguns de seus praticantes presos e mesmo fuzilados. O cérebro de Lênin, como mostrado no documentário, seria colocado ao lado de outros homens inteligentes da burocracia e da intelectualidade russa, para deifinir as características do cérebro/intelecto superior.
O principal objetivo (e maior mérito) do trabalho de Peter Cohen parece ser oferecer uma
contrapartida à identificação – recorrente em veículos de comunicação de massa e em documentários – das teorias e práticas científicas racistas exclusivamente com o nazismo e o fascismo de meados do século XX. As concepções extremadas adotadas pelos regimes nacionalistas e totalitários já vinham sendo amadurecidas e experimentadas em diferentes países, como fica evidente pela recorrência de temas da eugenia em discursos e plataformas de liberais, reformadores sociais e alguns setores de esquerda, bem nas idéias de amplos setores das classes médias desde fins do século XIX.
As controvérsias sobre o significado da hereditariedade biológica produzidas no século XIX – e que tiveram como conseqüência o surgimento da ciência genética propriamente dita – um impacto significativo nas idéias políticas e científicas do século XX. Cohen está certo ao apontar que hoje, no início do século XXI, quando experimentamos o declínio de utopias, há um contexto propício para que o ideal de manipulação da vida humana pelas ferramentas biológicas (genética) adquirir nova vida.


BIBLIOGRAFIA DE APOIO:
HOBSBAWN, Eric. A Era dos Impérios (1875-1914), 3ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.

Homo sapiens 19000 – Film Note – Movie Review. American Journal of Economics and Sociology, 10/1/02. Disponível em: http://findarticles.com/p/articles/mi_m0254. Acesso em 24/05/2008.

domingo, 6 de abril de 2008

"Tudo o que é solido desmancha no ar"

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Introdução: “Modernidade – ontem, hoje, amanhã”. Pp.24-49.


Nesta introdução de seu denso e profundo livro, Berman analisa o fenômeno da modernidade, definindo-a como uma “unidade paradoxal”. Ela tanto une os homens – por uma experiência comum de tempo e de espaço, de si mesmo e dos outros acima de fronteiras geográficas, nacionalidades, classes, religião e ideologia – quanto os força, “num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia” (p.24), sempre a readaptarem-se, refazerem-se.
Segundo o autor, a modernidade se vem se realizando através dos desdobramentos de um conjunto de processos sociais e históricos amplos que ele intitula “modernização”: grandes descobertas nas ciências físicas, a industrialização da produção, a explosão demográfica, o crescimento urbano, o desenvolvimento de sistemas de comunicação de massa, o fortalecimento de Estados Nacionais burocraticamente estruturados e geridos, movimentos sociais nacionalistas e de massa e um mercado capitalista mundial em permanente expansão. Já as interpretações e posicionamentos constituídos em relação a esses processos, fruto de angústias e inquietações surgidos já na era revolucionária, são chamados por Berman de “modernismos”. Nas palavras do autor, seu livro “é um estudo da dialética da modernização e do modernismo” (p.25).
A experiência da modernidade já tem uma história de cinco séculos e desenvolveu diferentes tradições nesse longo período. O autor propõe uma divisão – ainda que reconhecidamente simplista – da história da modernidade em 3 fases: a) do início do século XVI até o fim do XVIII, cujo “voz arquetípica” seria Jean-Jacques Rousseau, o primeiro a expressar uma sensibilidade propriamente moderna; b) da década de 1790 a todo o século XIX, quando, a partir da grande onda revolucionária iniciada na França, ganha expressão um grande e moderno público, que experimenta uma dicotomia profunda entre tradição e transformação – da qual emergem angústias e posicionamentos –; c) o século XX, quando praticamente todo o mundo sente os efeitos do processo de modernização e o modernismo penetra profundamente na arte e no pensamento, e, ao mesmo tempo, o público e a própria idéia de modernidade se fragmentam e perdem profundidade.
O século XIX é o momento de consolidação da modernidade e de definição de uma nova paisagem que propicia a experiência moderna propriamente dita. Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite...; jornais diários, telégrafos e outros instrumentos de media; Estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados multinacionais de capital; movimentos sociais de massa...; um mercado mundial que a tudo abarca, em crescente expansão, capaz de um estarrecedor desperdício e devastação, capaz de tudo exceto solidez e estabilidade. Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixão, e se esforçam por faze-lo ruir ou explorá-lo a partir do seu interior; apesar disso, todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a tudo isso, sensíveis às novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos ainda em seus momentos de mais grave seriedade e profundidade. (p.28)
Dessa forma, autores como Nietzsche e Marx, dentre muitos outros intelectuais, filósofos e artistas que se debruçaram sobre a problemática da modernidade, perceberiam o advento e expansão da modernidade como a permanente transformação dos antigos valores e formas sociais – algo extremamente nocivo à vida em sociedade, à identidade e aos valores, mas que abriria também novas possibilidades. O novo homem que recria seus valores, vislumbrado por Nietzsche, e a revolução dos operários proposta por Marx são formas que a própria modernidade teria propiciado de superar as contradições humanas, em direção a uma existência mais plena e igualitária. Essa fé modernista, expressa sempre intensamente, esteve assentada na idéia de que o mundo está impregnado de seu contrário e que, num momento posterior através de um processo dialético, conflitante, autodestrutivo mas renovador, algo mais digno e humano pode brotar. Há, enfim, uma crítica severa às conseqüências da modernidade, mas também esperança de que as suas contradições impulsionem a “coragem e imaginação” do homem para criar novos valores e novas identidades coletivas e individuais. Essa esperança no ritmo destrutivo-renovado está presente nas reflexões de todos os grandes modernistas do século XIX – incluindo Marx, Kierkegaard, Whitman, Ibsen, Baudelaire, Melville, Carlyle, Stirner, Rimbaud, Strindberg e Dostoiévski.
Marshall Berman vê o século XX, a terceira fase da modernidade, como o período mais brilhante e criativo da história, com toda a riqueza de meios de comunicação, de disciplinas científicas, de expressões artísticas profundas e geniais. Entretanto, o autor afirma que houve, já nas primeiras décadas do séc.XX, um "radical achatamento de perspectiva e uma diminuição do espectro imaginativo... (os pensadores do) século XX resvalaram para longe, na direção de rígidas polarizações e totalizações achatadas. A modernidade ou é vista com um entusiasmo cego e acrítico ou é condenada segundo uma atitude de distanciamento e indiferença neo-olímpica; em qualquer caso, é sempre concebida como um monólito fechado, que não pode ser moldado ou transformado pelo homem moderno. Visões abertas da vida moderna foram suplantadas por visões fechadas: Isto e Aquilo substituíram Isto ou Aquilo.”
Dessa maneira, futuristas e fascistas italianos, defensores entusiasmados e críticos céticos da tecnologia, as correntes filosóficas, políticas e artísticas dos anos 1960 – em especial a espécie de paradigma da Nova Esquerda, a idéia de “homem unidimensional” de H.Marcuse – seriam todos parte de um modernismo mais limitado, menos flexível. A década de 1960 gerou um “uma linguagem comum, uma ambiência vibrante, um horizonte comum de experiência e desejo”(p.45), sendo assim palco de controvérsias em torno do sentido da modernidade, gerando três tendências de modernismo: uma que afirma, a outra que nega e a outra que se esforça por ausentar-se da vida moderna. São sempre posições “mais grosseiras e mais simples, menos sutis e menos dialéticas do que aquelas de um século atrás”. (p.41) O modernismo poderia, para elas, representar ora uma adesão cega à modernidade e seus efeitos (como o fizeram McLuhan, Susan Sontag e muitos auto-intitulados pós-modernistas), ora uma negação desesperançada, ora um esforço por não assumir um compromisso em relação a ela, reduzindo ao extremo a crença numa capacidade humana de interferir nos rumos da modernidade (como Weber e Foucault).
A melhor opção para se lidar com a problemática da modernidade é, para Berman, uma volta às raízes das tradições oriundas dos modernismos do século XIX. Os intelectuais que buscam auxiliar na produção de novas e mais criativas formas de pensar a modernidade devem buscar o elemento contraditório, flexível e por isso criativo da produção artística, filosófica e mesmo políticas de grandes pensadores daquele momento – isso pode nos oferecer chaves para a construção e afirmação de identidades individuais e coletivas – locais e, por que não, globais ou supranacionais – apesar da (e fortalecendo-se com) força destruidora mas criativa desse turbilhão que é a experiência cotidiana do homem contemporâneo.